Com as torcidas e pela democracia

No último domingo, 31 de maio, aconteceu uma manifestação antifascista convocada para o MASP, na Avenida Paulista e marcada por membros de torcidas organizadas de times de futebol do estado de São Paulo. Que fique claro, por membros dessas torcidas e não pelas direções das mesmas. O protesto, segundo os organizadores, se faz necessário em um momento em que as instituições que devem garantir a democracia e o estado de direito no Brasil estão sendo atacadas e ameaçadas constantemente. Segundo a PM, o ato reuniu cerca de 5 mil pessoas. 

No ato a maioria dos torcedores eram corinthianos, já que foi deles que surgiu a iniciativa. Nenhuma surpresa, haja vista que a maior torcida do Corinthians, os Gaviões da Fiel, desde a sua criação em 1969, nasceu para reivindicar mudanças, a começar pela saída de Wadih Helu, que era presidente do clube desde 1961. Mas não apenas: nos anos seguintes, foi tomando corpo um movimento no clube paulista que veio a ser conhecido como a Democracia Corinthiana, um marco na história da luta democrática desse país, encabeçado e liderado por nomes como os do saudoso Dr. Sócrates, Casagrande, Wladimir, Zenon e outros jogadores que faziam parte do plantel do Corinthians na parte final da década de 1980.

Voltando ao protesto de domingo, não estavam presentes apenas os corinthianos. Numa clara mostra de união sem igual, estavam sob o mesmo Vão Livre do Museu de Arte de São Paulo palmeirenses, santistas, são paulinos, juventinos e tantos outros torcedores. E não apenas. Dentre eles, muitas pessoas que não fazem parte de nenhuma torcida organizada, como é o meu caso e de outros tantos.

A manifestação não era especificamente contra um político ou contra o presidente da República, mas sim contra a escalada antidemocrática, golpista e com traços de fascismo que está em constante crescente no nosso país. Resumindo: um perigo sem tamanho para nossa nação e sua jovem democracia, que tem esse discurso periculoso reverberado pelo chefe do executivo nacional, a maior autoridade do país, que atende pelo nome de batismo de Jair Messias Bolsonaro, considerado o líder mundial que desdenhou da pandemia do novo coronavírus e que vê o Brasil seguir a passos largos rumo à liderança como o novo epicentro da Covid-19 no mundo.

A pequena mostra que deram as torcidas, além da adesão de cidadãos comuns à manifestação antifascismo, traz alguns marcos importantes. Um deles é a “retomada” de parte das ruas das mãos dos bolsonaristas, que as receberam de bandeja em seus colos após os ordinários movimentos de 2013 que levaram uma presidente inocente ao impeachment, num claro golpe articulado em conjunto com a mídia e os poderes Judiciário e Legislativo, deixando o país em colapso e à beira do precipício, culminando em uma polarização política que foi poucas vezes vista em algum país do globo terrestre.

A esquerda (e digo aqui na figura da oposição a este governo de extrema-direita) nitidamente está rachada. Grandes nomes progressistas e liberais, além de movimentos sociais, clamam por uma união, uma frente democrática, o quanto antes seja possível, antes que seja tarde demais. E esse movimento liderado pelas torcidas é um alento, um ato de coragem que resgata um pouco da vontade de lutar e se mobilizar, que foram de alguma maneira desencorajadas ao longo desses últimos anos por diversos motivos como amorosidade, o comodismo e também o receio.

Mas volto a me ater ao protesto da avenida Paulista, ao qual me fiz presente e encontrei diversos conhecidos. O skate tem sido elemento presente nas manifestações em todas partes do mundo (como visto recentemente na capa do jornal inglês Metro com os protestos em Los Angeles pelo assassinato criminoso de George Floyd por um policial branco). E aqui não poderia ser diferente. Muitas pessoas de bicicleta também estavam por lá, entregadores de aplicativos, pessoas mais velhas… Todos eles unidos contra o fascismo, o discurso de ódio e o golpismo.

Reprodução Twitter J.L

Apesar de marcada para o mesmo horário que o ato em apoio a Bolsonaro, e separados por um cordão de policiais da Tropa de Choque de São Paulo, nenhum dos presentes ao lado dos torcedores queria ir pra cima ou bater nos bolsonaristas. Muito pelo contrário, era um contra-ponto de ideias e ideais, pois diversos automóveis com a bandeira do Brasil se dirigindo à FIESP (local onde estava acontecendo o apoio ao presidente) passavam na frente da manifestação antifascista sem nenhum problema, numa clara diferença nos discursos e práticas ameaçadoras e belicistas dos apoiadores do clã Bolsonaro.

Muitos disseram que os “antifascistas” foram preparados para a briga e para enfrentamentos, e que estavam armados com paus e pedras, coisa que eu não testemunhei. O que se viu na Paulista foi o início de uma confusão após várias horas de ato pacífico, com o paviu que foi aceso após uma senhora presente ao ato de apoio ao presidente ser retirada gentilmente da manifestação com seu taco de beisebol (arma branca) e sua máscara estampada com a bandeira dos EUA por policiais, provocando quem estava na outra manifestação. Foi o estopim e ai todos nós já lemos algo ou vimos as imagens do embate entre policiais e as pessoas presentes ao ato antifascista.

Mesmo que a confusão tenha começado do outro lado, incitado por provocações dos bolsonaristas, a Polícia Militar apenas perseguiu os presentes ao ato dos torcedores, numa clara escolha de lado. Os antifas, assim intitulados, usaram o que encontraram pela frente para formar barricadas e contra-atacar as bombas de efeito moral, balas de borracha e demais investidas dos policiais.

Durante essa semana, boa parte da imprensa e alguns deputados de partidos de direita criticaram os antifas duramente. Li muitas matérias, textos e comentários na internet classificando os torcedores como marginais e bandidos. Boa parte da opinião pública ainda compra essa ideia, pois a sociedade não compreende a análise do discurso, que muitas vezes é hegemônico. Mas todos nós sabemos que nas torcidas organizadas existem muitas pessoas de bem. Outras nem tanto assim, como é em qualquer outra entidade, organização ou família.

Não estou aqui para acusar e nem para defender ninguém. Esse não é meu papel, mesmo estando de um dos lados da manifestação. Não estava lá como jornalista, mas sim como cidadão na luta pelos meus direitos que estão severa e continuamente sendo cerceados. Apenas escrevo esse texto, pois acho justo trazer a visão dos que estavam presentes na manifestação antifascista. Reforço e ressalto aqui, mais uma vez, que o ato realizado foi um movimento importante nesse tabuleiro de xadrez, que retomou parte das ruas e inflamou outros brasileiros, em outras cidades, a se manifestarem. Os próximos atos antifascistas já foram marcados para esses próximos dias e semanas, e isso é o que empolga para a resistência tão necessária nesses momentos, pois sabemos que “a cadela do fascismo está sempre no cio

Atos foram vistos não apenas na Capital Paulista, e se espalharam pela Fluminense, Amazonense e Paranaense. Sim, os que aderiram a essa manifestações antifascista quebraram (por assim dizer) a recomendação de se manterem em casa, isolados. Porém, todos os presentes estavam usando máscaras e respeitando o distanciamento entre os corpos, algo bem diferente do que se vê nas manifestações de apoio ao presidente (que são consequentemente contra os governadores favoráveis ao isolamento). Este mesmo presidente que utiliza máscaras em suas tradicionais lives nas redes sociais (bebendo leite com aliados), mas que não o faz quando se faz presente em atos de apoio ao golpismo descarado montado a um cavalo (simbologia é tudo).

E para além disso, a volta às ruas inspirada agora pelas torcidas de futebol, soa como um chamamento aos corajosos que devem enfrentar essa manada acéfala e reprodutora de discursos. Ela parece ter inspirado boa parte da sociedade a voltar às ruas em protesto contra uma ideia retrógrada, preconceituosa e violenta que está quase se instaurando em terras tupiniquins novamente. Querem inclusive criminalizar quem se diz antifascista! Nós já vimos esse filme (ou livros de histrória), e nós avisamos!

Skatista se manifestando no MASP em 2012. Foto retirada do livro Streeteiro, de Alexandre Vianna

Tentaram descreditar a legitimidade dos protestos, mas o que se viu foi o levante por parte de outros setores que estão cansados dessa tensão e ameaça de volta à ditadura. Mas, assim como no ato “Skate Livre Pela Democracia”, realizado às vésperas do segundo turno das eleições de 2018 com o lançamento do Manifesto pela Democracia (redigido por parte das mídias de skate do Brasil) e que reuniu cabeças pensantes do skate para um debate em praça pública (Roosevelt), me sinto reenergizado e acredito que haverá luta e resistência.

Espero que apareçam muito mais skatistas nos próximos atos em defesa da democracia, assim como também mais pessoas e cidadãos preocupados com o destino do país e que fazem parte dessa parcela de 70% da população que está cansada do discurso hostil e intimidatório proveniente do Palácio do Planalto e do seu chamado “Gabinete do ódio”.