INVASORES

 

“Don’t ever stop hopping fences” (“Nunca pare de pular cercas”). A frase estampada em letras garrafais dentro de uma pista de skate não é uma ação de marketing vazia, incongruente ou sem significado. Pelo contrário, é um lembrete sincero, que diz respeito a algo presente no DNA de skatistas do mundo todo.

 

E, em função dessa natureza transgressora, acredito que skatistas que criticam a atuação de Guilherme Boulos no MTST são, essencialmente, hipócritas. Ou não são skatistas de verdade.

 

Para um skatista de verdade eu nem precisaria explicar a correlação citada acima. Ela é tão óbvia que até dói. Mas, pensando nos hipócritas, aqui vai: dois momentos decisivos da história do skate estão ligados à invasão de propriedades privadas. Isso é um fato, não cabe nem discussão. Ou melhor, fatos, pois me refiro a dois momentos distintos. Primeiro, no famoso (virou até filme, Hollywood e pá) fenômeno da invasão das piscinas californianas nos anos 1970, algo que semeou as bases do skate em transição tal qual conhecemos hoje. E, depois, nos anos 1980, quando o street skate nasceu e imediatamente revelou que seria uma prática que ocuparia as ruas, literalmente: tanto em praças e calçadas públicas quanto em corrimãos, escadas, retas, bordas e canos de propriedades privadas. Skatista não faz distinção na hora em que se depara com um pico dos sonhos: “Ah, não, aqui não vou andar, pois é propriedade privada” ou “Nossa, aqui tá liberado, é a escada de uma escola municipal”.

 

Skatista sempre foi invasor. Faz parte da cultura do skate.

 

O termo “invasor” obviamente não cabe nos equipamentos públicos, pois aí não se configura uma invasão, mas apenas usufruto. Todavia, quando você pensa numa parte de vídeo de street, no mínimo 50% do material foi captado em propriedades privadas, via de regra sem o consentimento dos proprietários. Pelo contrário, em geral com o segurança no cangote. Ou então com tempo muito reduzido para acertar.

 

Que fique claro: não tenho vergonha disso. Gosto de ver marcas de rodas em paredes de lojas, escritórios e fábricas. Dá uma sensação de pertencimento, de “estar em casa”, mesmo que a casa não seja minha, hahaha.

 

Nesse território, nós temos telhado de vidro. Você pode tentar argumentar ou fugir da realidade, mas é um calcanhar de aquiles. Dos grandes! A única alternativa para se desviar das evidências é praticar a hipocrisia. E isso acontece, infelizmente. O mesmo skatista reaça que dá um fifty na bordinha de uma concessionária consegue a proeza de chegar em casa, tomar a sua “breja artesanal” e criticar o MTST nas redes sociais. Tem alguma coisa muito errada nessa equação. Ou ele não sabe que estava invadindo uma propriedade privada e depredando o local? Acho pouco provável uma ignorância tão severa… Não condeno o fifty na bordinha, jamais faria isso, mas não dá pra tapar o sol com a peneira: os trucks deixam marcas na borda, desgastam a superfície, muitas vezes chegam a quebrá-la. Existe um inegável componente de “vandalismo”, para lançar mão de um termo bastante utilizado pelas alas conservadoras.

 

Na verdade, e sendo bem honesto na análise, os skatistas são muito mais transgressores do que Guilherme Boulos: enquanto o MTST ocupa para morar (e também para resistir), skatistas invadem pela diversão. A motivação dos primeiros é a sobrevivência e a moradia; a motivação dos skatistas é o prazer de andar de skate e a vontade de registrar uma manobra para um vídeo ou uma revista (ou até para o Instagram, algo muito mais corriqueiro atualmente). Se você é streeteiro, não se engane: você é um invasor.

 

Além disso, há outra diferença fundamental: o MTST ocupa espaços abandonados ou com dívidas estratosféricas, daquelas que jamais serão quitadas; skatistas não têm esse cuidado, nunca tiveram, pois geralmente invadem propriedades privadas ocupadas. Até mesmo com os moradores lá dentro. Ou você se esqueceu daquela senhora que saiu gritando quando você estava manobrando na muretinha da casa dela? Mason Silva sabe muito bem como isso funciona: logo na abertura do seu inacreditável novo vídeo, ele sentiu literalmente na pele. Um exemplo prático e perfeito do skatista-invasor sendo tratado com delicadeza pelo dono do imóvel.

 

 

 

 

Repito: skatistas são invasores. A verdade é essa e (quase) ninguém escapa. Do skatista profissional na ativa ao barriguinha de chope que só anda de domingo, mas que não pensou duas vezes na hora de dar um wallride na parede verde de um hotel qualquer.

 

(Sempre vale lembrar: o veterano Salba segue pulando cercas – às vezes bem altas – para andar em piscinas alheias na Califórnia. Se essas piscinas com transição existissem aos montes no Brasil, você acha que escapariam ilesas? Nem a pau!)

 

Pense numa tour de skate: com exceção de alguma demo em pista e talvez uma tarde de autógrafos na skate shop local, uma tour de skate é basicamente uma grande excursão para caçar e usar (sem autorização) propriedades privadas em outros estados ou municípios, muitas vezes com suporte financeiro de empresas multinacionais. Essas marcas têm que apoiar isso, pois isso faz parte do estilo de vida dos skatistas que elas patrocinam. E dos skatistas que consomem os produtos que elas lançam.

 

Por isso, insisto: um skatista que critica movimentos como o MTST é um hipócrita. Tá mentindo pra si mesmo.

 

Ou estamos diante de um skatista que só anda em pistas e condena o skate de rua? Nunca me deparei com um caso assim, e estou nesse rolê desde 1988. “Veja bem, sou skatista, mas não gosto daqueles marginais que andam na rua.” Lembra aquele meme do guri almofadinha, com alguma frase do tipo “Com licença, você tem um minuto para me ouvir criticando os skatistas que andam na rua?”. Seria um pensamento bem tacanho, mas pelo menos não seria hipócrita: a pessoa deixaria claro que não compactua com os “vândalos” das ruas. Porém, acho improvável encontrar alguém que admita isso publicamente. Pode até existir algum skatista que pensa assim, mas verbalizar isso são outros quinhentos. Talvez alguns tios que colam na sessão old school possam ter comportamentos distintos ao se depararem com uma sessão de rua, sozinhos nos seus carros brilhantes, mas na pista vão pagar de descolados, tenho certeza.

 

Eu sei que a tendência natural é que a idade traga uma visão de mundo mais conservadora, mas fico espantado quando observo tantos skatistas old school convertidos tristemente ao reacionarismo. Na minha cabeça, essa tendência parece fazer mais sentido para pessoas que cresceram distantes da nossa cultura, totalmente formatadas pelo mundo mainstream. Achava que o pacote cultural do skate pudesse ser um antídoto natural contra a caretice. Mas, pelo jeito, me enganei.

 

Todavia, o ponto aqui não é a caretice, mas, sim, a hipocrisia. Essa hipocrisia que se manifesta de maneira assombrosa quando um skatista que passou a vida toda correndo de seguranças e pulando muros tem a cara de pau de criticar a atuação de Boulos no MTST.

 

Para eles, deixo aqui o versículo primeiro da Bíblia do Skate, lei natural constatada e eternizada nas palavras de Craig Stecyk: “Em sua natureza, os skatistas são guerrilheiros urbanos: diariamente, eles utilizam e aproveitam as estruturas inúteis construídas pelo governo e pelas corporações, de mil maneiras que os arquitetos originais jamais poderiam sonhar.”

 

Vote em quem você quiser, mas não seja hipócrita.