Leonardo Brandão
Historiador e Professor Universitário
No início de 2004, período no qual estava terminando meu bacharelado em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), publiquei meu primeiro texto sobre skate numa mídia impressa de alcance nacional: a revista 100% Skate (Atualmente a grafia desta revista/mídia digital aparece como CemporcentoSK%TE).
Nesta época, estava escrevendo meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), requisito obrigatório para a obtenção do meu almejado título de historiador. Eu havia resolvido pesquisar (para espanto de alguns professores mais ortodoxos, mas também motivado pelos entusiastasda “Nova História”) a prática do skate; tema até então inédito nos estudos historiográficos no país (havia alguns trabalhos na área da Educação Física, mas nada em História).
Foi neste contexto que tive a coragem de enviar pelos Correios (pois eu não tinha computador e nem acesso fácil à Internet nesta época) um pequeno texto para essa revista da qual já era leitor desde a sua fundação no ano de 1995.
O texto foi enviado com mais dúvidas do que certezas: Será que ele chegaria a seu destinatário? Será que seria lido pelo editor? (na época, o skatista profissional Alexandre Vianna) Será que seria publicado?Algum tempo se passou e, para minha surpresa, recebi pelos Correios a edição impressa da revista em minha residência; nela, havia meu texto publicado! Foi uma festa, mas também o início de uma parceria que se mantém (com períodos de maior e menor intensidade) até os dias atuais.
Relendo esse texto após quase duas décadas de sua publicação, ainda hoje o considero interessante, pois ele nos incita a pensar sobre as possibilidades do corpo. A seguir, reproduzo-o na íntegra para que ele chegue a novos leitores (talvez alguns que nem eram nascidos na época de sua publicação original). Após isso, escrevo outro breve texto atualizando algumas informações nele contidas e finalizo sugerindo alguns links para quem quiser saber mais sobre o assunto aqui tratado.
CONVITE À QUESTÃO: O QUE PODE O CORPO?
Quando, no século XVII, o filósofo holandês Bento Espinosa (1632 – 1677) escreveu “Ética”, um dos livros mais importantes de toda a história da filosofia, ele observou: “Ninguém, na verdade, até o presente, determinou o que pode o corpo, isto é, a experiência não ensinou a ninguém, até o presente, o que, considerado apenas como corporal pelas Leis da Natureza, o corpo pode fazer e não fazer”. Séculos passaram e a questão continua inquietante. Afinal: que pode o corpo?
Transportando essa questão para o universo do skate, ela parece redobrar o seu valor. Pois foi com ele e por ele que o corpo pôde saltar gigantescas escadas, descer corrimãos, andar por transições, bordas, bancos, palcos etc. O skate descobriu novas possibilidades para o corpo e, a cada dia que passa, skatistas demonstram algo novo que ainda se pode fazer com ele: Bob Burnquist provou que o corpo pode dar um looping num tubo, Tony Hawk demonstrou que o 900º é possível numa rampa vertical, outros tantos já exploraram seus corpos de inúmeras maneiras, sempre tentando ultrapassar seus limites e provando que o corpo humano, com um skate sob os pés, pode se superar constantemente, encontrar novos desafios e lugares para andar.
A evolução permanente nas manobras de skate lança o desafio da superação infinita: criar novas manobras, executá-las em lugares inusitados, fazer diferente. O futuro no skate, ao contrário da grande maioria dos esportes, é uma caixa de surpresas a demonstrar que o novo pode ser inventado sempre.
(Texto publicado na edição impressa da revista 100% Skate, n. 74, maio de 2004, p. 96).
**Imagem: 1ª foto: a capa da revista 100% SKATE, edição n. 74, maio de 2004. A 2ª “Convite à questão: o que pode o corpo?”, publicado nesta edição.
Atualizações: Realmente, Bob Burnquist foi o primeiro skatista a realizar um looping num tubo “natural”, isto é, não projetado para o skate. Ele realizou tal façanha no dia 23 de novembro de 2003 às 16h e 20 minutos, tal como consta no site da Transworld Skateboarding listado abaixo. Há relatos, todavia, de que o looping em rampas projetas para o skate havia sido concluído já em 1979 pelo skatista norte-americano Duane Peters. Importante registrar que no ano de 1998, Tony Hawk decidiu recuperar a ideia do looping e o realizou com perfeição,documentando o feito no filme “The End” da Birdhouse. Ainda sobre Bob, o skatista também teve os méritos de realizar o primeiro looping com gap, isto é, com uma abertura na parte superior do tubo. Acerca do giro de 900º, com o passar do tempo, mais rotações foram introduzidas. Em maio de 2020 o skatista curitibano Gui Khury foi o primeiro a realizar o 1080º (três giros completos) numa rampa vertical e entrou para o Guiness World Records(antes dele, em 2012, o skatista Tom Schaar havia conseguido os três giros, mas numa Mega rampa, o que permite maior velocidade e amplitude nas manobras).
Para saber mais:
1 – Site da Transworld Skateboarding que afirma o pioneirismo de Bob Burnquist no looping num tubo “natural”.
https://skateboarding.transworld.net/news/bob-burnquist-makes-skateboarding-history/
2 – Veja o próprio Bob Burnquist, em entrevista no Programa Podpah flow cast, recuperando a história dos skatistas que fizeram o looping e citando o nome de DuanePeters e Tony Hawk.
https://www.youtube.com/watch?v=1tTs9iGdThM
3 – Tony Hawk realizando o looping no ano de 1998 em imagens do filme “The End” da Birdhouse:
https://www.youtube.com/watch?v=gO07tMtmByg&t=5s
4 – Vídeo do skatista Gui Khury realizando o primeiro1080º numa rampa vertical (half-pipe) no canal doyoutube do Guinness World Records: