O QUE É SKATE URBANO?

 

Como intitular o skate que interpreta e faz uso do equipamento das cidades, em especial bancos, escadas, meios-fios, corrimãos e paredes? A resposta parece ser óbvia: streetskate. Entretanto, o vocábulo guarda suas irregularidades e ambivalências.

Em função das Olimpíadas de Tóquio, muito se falou na televisão e na Internet sobre streetskate, uma vez que a modalidade emplacou, junto com o chamado Skate Park, os Jogos Olímpicos, inclusive a modalidade street foi a responsável por trazer a maior quantidade de medalhas numa mesma atividade para o país: duas de prata, conquistadas por Rayssa Leal e Kelvin Hoefler.

Mas o que vimos nas Olimpíadas foi o streetskate? A resposta é não, pois se trata de um simulacro, uma vez que o uso do skate é feito sobre obstáculos construídos especialmente para as competições, dentro de um tempo cronometrado e sendo avaliado por juízes pagos para trabalharem no evento. Poderíamos afirmar que as competições de streetskate são um pastiche, uma imitação para fins de pódio daquilo que, um dia, teve sua origem nas ruas como uma forma de experiência urbana.

Matheus Lima, frontside wallride (foto Allan Carvalho)

O streetskate nasceu no início da década de 1980 nos EUA, ligado tanto ao fechamento de muitas pistas construídas na década anterior quanto a um novo formato do skate, com shape largo e tail bem inclinado (diferente, portanto, do skate “surfinho” dos anos 70). Dentre os nomes de skatistas norte-americanos que ajudaram a moldar essa nova modalidade, destaca-se o de Natas Kaupas, reconhecido como um verdadeiro skatista de rua – embora também tenha participado de algumas competições no período.

Pois bem, skate praticado na rua é street; mas skate praticado em pistas que simulam a rua não é exatamente street. Então, como intitulá-lo? O enigma já tinha sido desvendado no passado, quando os próprios estadunidenses passaram a chamar seus campeonatos em pista de streetstyle, isto é, Estilo de Rua. O termo é perfeito, mas com o tempo acabou caindo em desuso. Acredito, porém, que chegou o momento de recuperá-lo.

Hippie jump de Felipe Munhoz (foto Allan Carvalho)

Se pacificamos a questão ao chamar street em pistas de streetstyle; resta refletirmos um pouco mais sobre a noção de streetskate. O termo é bastante popular e de uso corrente, mas recentemente, numa conversa com o skatista Murilo Romão, ele sugeriu o termo Skate Urbano. Segundo ele, o termo indicaria melhor a ideia do skate como percurso, que faz uso da cidade, percorre espaços. De fato, o vocábulo Skate Urbano lembra em diversos aspectos o legado da Internacional Situacionista, grupo de artistas, pensadores e ativistas europeus que, por volta da metade do século XX, buscou a constituição de novas territorialidades em detrimento ao progressivo esquadrinhamento causado pela modernidade. Para eles, a deriva seria um modo de subversão da cidade, e as experiências efêmeras de apreensão do espaço urbano um recurso lúdico para construir, explorar e reconhecer outros lugares possíveis de ambiências. Em seus escritos, os situacionistas, como Guy Debord e Fillon, insistiam que era preciso inventar novos espaços de jogos e transformar, por meio da construção de situações – isto é, atitudes concretas e inusitadas de ambiências momentâneas no espaço – a própria noção de vida cotidiana.

O conceito de Skate Urbano tem suas vantagens: sua semântica indica claramente o skate na cidade, flanante, voltado para o lúdico (Ludens); além disso, seu vocábulo coloca na língua portuguesa o que, na outra expressão, encontra-se em inglês (street). Assim, o termo Urbano seria mais amplo do que Rua, a tradução de street. Pois nesta modalidade não é exatamente a rua a única apropriada (o que acontece no downhill slide ou no speed, com ruas em declive).

Carlos Castro, drop (foto Allan Carvalho)

 

Em resumo, são dois pontos a ponderar:

 

1) Faz necessário recuperar o termo streetstyle do ostracismo. Utilizá-lo na narração das competições seria uma forma de melhor dizer aquilo que se quer falar, isto é, trata-se do skate usado em ambientes que simulam obstáculos da cidade, e para andar neles, os skatistas precisam realizar manobras no “estilo” daquelas que fariam se estivessem nas ruas e praças da cidade.

 

2) Usar o termo Skate Urbano para se referir tanto a prática quanto aos skatistas que transitam por picos na cidade, que fazem uso do skate nos espaços urbanos e que interagem com esses espaços através de determinadas técnicas corporais.

 

O Skate Urbano não está ligado ao universo das competições, mas isso não significa que ele seria uma prática de lazer sem compromissos com o profissionalismo. Pois, caso o praticante de Skate Urbano deseje se tornar um profissional, o caminho a ser percorrido seria por fora das competições, ligando-se a elementos como a fotografia e a produção de imagens em movimento (vídeos). Portanto, trata-se de uma modalidade que também permite o profissionalismo, mas esse se dá por caminhos distintos do pódio e da medalha.

 

Por fim, creio que o termo street está bastante arraigado e deva perdurar em detrimento da boa noção de skate urbano; mas haverá o dia em que comentaristas na televisão se darão conta que mesmo a Rayssa Leal – por mais que ela seja uma skatista amada pelos quatro cantos do país – se for tentar um backside boardslide em algum corrimão na cidade (e não na pista), correrá o risco de ser importunada por policiais e agentes de trânsito. Mostrar a medalha, neste caso, não irá adiantar muita coisa, pois na cidade o cenário muda! Saímos do simulacro do streetstyle e entramos na realidade, por vezes hostil, mas também prazerosa, do skate urbano, com suas muitas aventuras e desventuras!