O médico não cura, vai passando remédio, mas não sara, né?
Tem coisa que é pra doutor, outras não.
Deus querendo, até a água do pote é remédio.
Falei tanto do cerrado no filme mas falhei em não falar da Chapada dos Veadeiros, um dos meus lugares favoritos no universo. Foi onde filmei tudo, a maioria em Alto Paraíso, algumas coisas em Cavalcante, no Quilombo dos Kalungas, e outras nesse trânsito pelo sertão chapadense.


Vou contar uma historinha aqui. Fui passar um tempo na Chapada, no final do ano passado, o Fabiano (Rodrigues) foi pra lá também, além dos residentes Kimura e Tom. Levei alguns equipas na mochila pra fotografar e lembro de ter comentado com o Lokinho: “pô, acho que vou aproveitar esse tempo aqui e escrever um filme.” Eu tenho alguns roteiros, gosto muito de escrever, mas nesse filme aconteceu tudo ao contrário, na real, aconteceu orgânico como tinha que ser. Enfim, não consegui escrever nada, tava em outros processos. Lokinho foi embora e chegaram Arthur e Tauan, também pra passar o fim de ano lá. Acabou que fomos ficando bastante tempo por lá, eu tinha me machucado na pistinha de Alto, e nada de filme até então. Só depois disso fui pegar na câmera, falei pros moleques “bóra filmar?” Falei com o Kimura, se rolava da gente fazer uma sessão no ‘bowlzinho’ do Vale Verde onde ele mora. Kimura topou, os resto dos moleques também, na hora, os bichos são muito skate. Colamos no bowlzinho, era uns 15 km de Alto Paraíso, e ai começou tudo, fizemos as imagens do bowl tudo em um dia, e a partir dai eu vi o filme nascer, esse começou sem roteiro, skate tem disso né. Ficamos cerca de um mês por lá, pegando umas imagens nas trilhas, algumas missões na rua de Alto, mas não muita coisa porque era uma época de chuva.

Os caras são tudo candango, assistam “Flanantes – Against Le Corbu“. O Arthur eu conheci primeiro, na época da Cria, eu andava muito com Badê, fazia as fotos de muitas das sessões, e o rato apareceu por ultimo, no finalzinho da marca. Daí conheci, em umas sessões em Brasília, o Tom, que é primo do Rato. O Kimura que foi um cara que conheci fora do skate, ele é amigo da mãe do meu filho, fizeram geologia juntos. E por último conheci o Tauan, mas já sacava e admirava a criança. A real é que a intenção vem antes dos encontros, e aí o universo cuida do resto. Todos nós temos um olhar pra vida parecido, cada um no seu processo. Mas a gente partilha de muita afinidade.
E a escolhas da trilha sonora? E ainda nessa parte artística, como entra o trabalho do Kboco?
Quando comecei a pensar na edição filme eu fui falar com o Abdala, da Proposito Records (procurem saber). O Ab é meu parceiro de Goiânia, pedi pra ele as produções dele que tivesse mais a cara do sertão ali, e chegamos nas que ele assina como Kinah Hamilton. Também teve um som que eu pedi pro Daniel Marques, que é uma mix usando Milton Nascimento – Ponta de Areia. Ele também jogou na mão e apesar de já ter usado no vídeo da Squadshit, fazia muito sentido pra mim colocar um trecho naquela parte. Teve também o Felipe Yago tocando o canto de Oxum, a orixá das cachoeiras e do ouro, e Flaviola no final falando sobre a esperança no renascer de um novo dia.
Outra pessoa que o universo colocou nesse trajeto, foi o Kboco. O Kboco mora na Chapada, é conterrâneo e um dos artistas atuais que eu mais admiro. Fui lá, fiz um corte do vídeo e mandei pra ele ver e pensar se conseguia interagir com algo, ele curtiu, e sugeriu fazer as letras, depois ainda soltou uns elementos que vocês vão ver no filme. Com exceção do Dani, são todos frutos do cerrado.
Nós, skatistas, vivemos, basicamente, do concreto e do uso da madeira, duas coisas que vão na contramão da consciência ambiental. Ou não?
Nada é totalmente urbano. A origem da tragédia da humanidade está totalmente ligada à sua ganância em dominar a natureza, em acreditar que somos separados dela. Aquilo que se considera urbano tem em sua essência a cultura ancestral, que é nativa dos povos originários.
Quando eu machuquei meu ombro eu tomava chá de canela de velho e açafrão. O Arthur se quebrou todas as vezes, ele botava argila no punho. É pelo resgate desses saberes que o filme se deu.
E o desafio de trazer temas complexos pro universo do skate, falar em eugenia, por exemplo?
Não dá pra crescer em algo tão subversivo quanto o skate e não questionar o que acontece nesses processos políticos. O cara que acha que o skate é só manobrar, não entendeu nada. É triste demais ver esse projeto de eugenia acontecendo, a devastação do cerrado faz parte desse processo genocida, que coloca a comunidade indígena e quilombola sob risco de morte. Ao passo que o agronegócio contamina a água, ele também contamina a cultura desses povos, quando ele taca fogo no nosso bioma, ele queima junto o patrimônio histórico e cultural desse país, na tentativa de apagar rastros da nossa miscigenação. Ali vivem curandeiras, raizeiras, benzedeiras, xamãs, parteiras, uma galera que tá aqui a milhares de anos antes de branco aparecer.
E pra quem se revoltou com o caso do George Floyd, abre o olho que além de matar povos pretos tem grileiro aqui apagando até a cultura desse povo, isso se faz a mais de 500 anos. Eu não vou conseguir te falar tudo sobre esse projeto, mas pra você ter uma ideia, a monocultura e o desmatamento daqui seca rios em todo o país, onde tem seca, tem miséria, tem vulnerabilidade, tem morte.
Como o skate pode ajudar a conscientizar as pessoas em geral (ou ao menos os skatistas) sobre a importância de uma visão mais ampla, com mais conhecimento, além desse micro universo do skate?
Eu gosto de olhar pro skate como um guia pra imaginação. Se tem algo que pode nos salvar é a imaginação. Sem ela a gente não vê saída nenhuma. Imaginar outros formatos de consumo assim como imaginamos as possibilidades no skate. Pensar que o skate nos ensinou a viver em comunidade, então que olhemos pro outro como uma extensão de nós. “Eu sou outro você”.
Quem é o Victor?
Sou pai de Aruê, que é a pessoa mais motivadora pra mim. Fotógrafo desde meus 20 anos e skatista desde os 15. Tenho 32 anos, vivo aqui no Cerrado, em Goiânia (GO), um lugar que tem uma cena linda de skate, música e arte, e pessoas que me motivam em toda parte.
Tenho amigos que são uma verdadeira família pra mim, e uma família que são ótimos amigos.
Fotos de Victor Quixabeira e Souza
Teaser: