CONCHA
Outro dia fiquei brisando: e se não existissem campeonatos? Possivelmente influenciado por todo esse falatório envolvendo a inclusão do skate nas Olimpíadas, acabei esbarrando com essa divagação em algum lugar ocioso da minha mente, e inclusive compartilhei a brisa com alguns amigos, no famoso grupo de WhatsApp. Serviu como laboratório, no sentido de legitimar a curiosidade.
Assim, embarque comigo nesse exercício de imaginação: e se a “cultura” do campeonato de skate nunca tivesse existido? Como seria a fisionomia do skate global num cenário desprovido da existência da competição? Você consegue imaginar? No atual estágio do skate, no qual milhares de skatistas conseguem desenvolver uma trajetória sem a necessidade de competir, essa brisa nem parece tão fantasiosa, afinal tem correspondência no mundo real. Mas como seria isso no passado? O skate de décadas anteriores teria sobrevivido e chegado até aqui se os campeonatos jamais tivessem existido? Como teria sido a transmissão da cultura do skate, desde o momento mais embrionário até hoje, sem a competição? Lojas, marcas, pistas, revistas, vídeos, festas… tudo isso se sustentaria sem o campeonato?
Este é um texto com mais perguntas do que respostas, eu sei disso. É difícil responder sobre algo que não aconteceu concretamente. Mas, se existe uma característica marcante e comum aos skatistas é a imaginação. Quem cria manobras também pode criar cenários utópicos. Então, vamos continuar brisando…
Quem inventou o campeonato de skate? Quem foi a primeira pessoa que chegou e falou: “Vamos ver quem é o melhor?”. Sinceramente não sei, e não creio que seja fácil obter essa resposta. Sigo, portanto, especulando. Teria sido um skatista ou o pai de um skatista? A sede de competição é algo inerente ao ser humano? O skatista não escapa dessa sina? Ou teria sido alguém de fora do rolê que teve a ideia de colocar os skatistas pra competir? Um familiar? Um dono de marca? O dono da pista? Tenho uma curiosidade legítima sobre isso. Talvez morra sem saber a resposta.
Gostamos de afirmar que o skate não é um esporte, mas a simples existência do campeonato é um Calcanhar de Aquiles. O observador externo pode sempre – e com certa razão – questionar: “Ué, mas tem competição”. É verdade, tem competição. Por isso, essa reflexão de imaginar o skate sem campeonatos também tem um componente de massagem no ego: não seria bem louco pensar que o skate poderia ser inclassificável como esporte?
Um pouco de realidade: os campeonatos foram importantes e marcantes para a minha geração, mas a atual estrutura do skate permite uma vida sem competição. Ou tô errado? Não sei se a minha geração de fato gostava de competir, ou se foi induzida a gostar. Era algo inevitável? Tinha que acontecer? O skate poderia ter vingado sem o espírito competitivo? Quem ficaria mais triste numa realidade paralela sem campeonatos: o skatista ou o patrocinador?
Nessa utopia (embora alguns possam até chamar de distopia), a inserção do skate na tevê não seria com os campeonatos transmitidos nas manhãs de domingo, mas sim com vídeos de skate de hoje e de ontem. Não tenho dúvida de que seria mais legal, mas teria audiência e/ou apelo comercial?
Pensar num mundo sem campeonatos de skate significa apagar da história uma vasta tradição, sem direito a exceção. Obviamente, eu não teria o menor problema em cancelar a existência da longa lista de organizadores picaretas, premiações meia-boca, obstáculos mal construídos, voltas enfadonhas e figuras paternas reclamando do lado de fora da área. Mas, por outro lado, seria com profundo pesar que deletaria o inesquecível frontside wallride do Mureta na 4ª etapa do Circuito UBS 89, em Pirassununga, ou aquela genial apresentação artística do Neil Blender no Street Style In Tempe, no Arizona, em 1986. Isso pra não falar do Rodrigo TX em Praga, do Ueda na Alemanha ou do inacreditável fakie 5-0 fakie flip do Bob durante o Best Trick dos X-Games 2000. Tudo isso poderia ter acontecido fora do ambiente do campeonato? Poderia. Mas aconteceu no campeonato. E teríamos que viver sem isso.
Formatos alternativos também seriam eliminados. Ou melhor, nunca teriam nascido. Desafio de Rua, King of the Road e até aquele inocente Game of Skate pra aquecer as pernas antes da sessão. Se implica em qualquer tipo de competição, está fora de cogitação. Não é um exercício fácil, pois todas essas coisas são divertidas e estão impregnadas na nossa cultura.
Nos últimos, digamos, vinte anos, a cobertura tradicional dos eventos de skate foi perdendo o sentido e o espaço nas revistas especializadas. Se nos anos 80 os campeonatos representavam a parte mais “quente” de uma revista, a partir dos 90 isso foi mudando, e o skate competitivo acabou virando notícia fria, destinada a receber umas poucas e burocráticas páginas distantes das partes mais nobres dos veículos. Então, dá pra supor que as revistas atuais estariam preparadas para um mundo sem campeonatos. Mas fico me perguntando se as marcas e as lojas que anunciam nas revistas também estariam prontas pra isso. E, sem elas, ficaria quase impossível entregar estas linhas que você lê agora.
O exercício imaginativo também colide com a memória afetiva. Isso não tem nada a ver com a minha trajetória pífia nos circuitos amadores dos anos 90, embora eu guarde lembranças muito legais dessas ocasiões. É que viver numa realidade sem campeonatos de skate equivale a viver sem a volta do já saudoso Jeff Grosso no Savannah Slamma (1988), hilária e histórica do primeiro ao último segundo.
No fim das contas, não sei se gostaria de viver num mundo sem essa memória.
Ilustração por Vitoria Bortolo, inspirada na volta de Jeff Grosso no Savannah Slamma (1988)
(nota do editor: Essa ilustração já existia desde antes de 31/03/2020, data do falecimento de Grosso)