Skate na quebrada (Coruja ed. 212)

Texto publicado originalmente na edição 212 de nossa revista impressa, na coluna Coruja, assinada pelo antropólogo e skatista Giancarlo Machado.

Celo Martins / 36 anos de idade / 24 anos de skate / Skatista e educador do coletivo Love CT – Foto: Toni Baptiste (@tonibaptistebrasil)

O skate estala nas bordas da cidade. A periferia é o centro de talentos, de sociabilidades, de resistências e afirmações. As quebradas vivem. E para contar algumas experiências de tais contextos, convidamos Celo Martins, skatista e educador do coletivo Love CT, que há anos fomenta o lado social do skate em Cidade Tiradentes, no extremo leste paulistano.

 

Em sua opinião, qual a diferença entre o skate na periferia e o skate na região central de São Paulo?

Eu acredito que a forma como o skate se desenvolve nas periferias é algo incrível e que precisa ser estudado. A pratica é por amor, é algo que pode ter sido a única opção antes do crime ou do primeiro emprego. Chegando ao Centro percebo que nada do que pensamos na periferia era verdade, pois entende-se nas periferias que o Centro de São Paulo é o lugar onde as marcas fazem suas ações de marketing e onde se tem empregos e empresas querendo contratar skatistas. Lá eu vejo jovens atacados pela publicidade, tentando trilhar o mesmo caminho de famosos skatistas, querem fazer tudo que lhes foi contado. Acreditam que se andarem na Praça Roosevelt irão conseguir patrocínios e destaque, como se o sucesso possuísse uma formula única. Isso desperta o consumo e gera uma cena genérica com data de validade e pessoas passageiras. Nas periferias o skate é praticado com verdade e onde se tem a verdadeira resistência. O Centro é pelo ego, pela fama, pela competição e sonhos materiais que serão impossíveis de serem realizados por nós, periféricos, ou talvez por 1 em 1 milhão.

Você considera que há preconceito em relação ao skate praticado nas periferias das cidades?

As aulas da Love CT às terças-feiras começam às 8 horas da manhã. Ainda escuto dizer que não gostamos de trabalhar. Nós sabemos quando somos excluídos do mercado. Qualquer skatista profissional conhece a Love CT e o projeto social, e, mesmo assim, os gerentes de equipe ou marketing não conhecem? A mídia do skate tem visualizado apenas quem possui patrocínio, isso é algo comercial, e o skate está para além desta constatação. As revistas devem documentar a história por ter a sua importância diferenciada nesta cultura. Outra coisa que a tal “elite” alega como forma de exclusão é que somos “muito loucos” na Zona Leste. É difícil alguém se referir a periferia sem apontar um defeito. Já nas redes sociais sempre se referem à cor da pessoa. O cara faz um vídeo mostrando uma sessão de manobras que fez e ouve comentários como “só treinando, né babalu de brigadeiro!”;  “Ah, não vem com essa de soltar as pernas, não, viu Negão!“;  “Caraio, Negão, nollie fs flip board foi foda, hein!”, “Negão Monstro”.  Está naturalizado na sociedade esse tipo de comportamento e esses indivíduos podem não se considerarem racistas, mas de todo modo essa reprodução desqualifica a pessoa e o trabalho que ela fez destacando a cor ou raça como algo importante a ser lembrado naquele momento. Para o filho do empresário sempre vão dizer que ele “merece” e que fez por merecer todos os seus privilégios e que nós da periferia temos que fazer por “merecer” para poder trabalhar para eles a baixo custo e ter os nossos direitos. A meritocracia e a invisibilidade são destrutivas e mortais.

O que é mais marcante no skate do extremo leste paulistano?

Fazemos campeonatos desde os anos 1990. É marcante e verdadeira a forma como cada um vive o seu estilo de vida. Somos unidos e respeitamos a diversidade, mantemos o skate vivo independente de todas as críticas. Acredito que somos a maior comunidade de skatistas da cidade. Aqui ninguém está preocupado em ser o melhor, todos passam por dificuldades financeiras e as marcas locais não são concorrentes. O skate é praticado todos os dias, colaborando, e muito, com a evolução do skate mundial. De Mogi à Ribeirão Pires, da CT à São Miguel, de São Mateus até chegar ao Centro, temos uma Zona Leste em nossas cabeças. O Fundão da Cidade. Somos uma potência e um universo único no skate mundial. Temos dois dos principais projetos sociais que utilizam o skate como ferramenta na sócio-educação de crianças e adolescentes no Brasil.

O distrito de Cidade Tiradentes possui diversas pistas de skate, no entanto, muitas delas estão em péssimas condições. Mesmo com tais limitações, a região é berço de grandes talentos do skate nacional. O que falta para melhorar as condições para o skate e, consequentemente, a emergência de novos talentos em Cidade Tiradentes?

A Cidade Tiradentes possui o maior conjunto habitacional da América Latina. 600 mil habitantes em média (220 mil habitantes em dados oficiais). Estamos a 35 km de distância da Praça da Sé no Centro de São Paulo. Praticamente uma “Ilha”, longe e sem conexão ao Centro. Em nosso distrito se consome as grandes marcas do mercado, então eu acredito que o olhar por parte da prefeitura local e da Confederação Brasileira de Skate pode ajudar a mudar esse cenário. A presença de um agente da CBSk em nossa sede/galeria de arte daria início a uma nova era do skate praticado nas periferias do Brasil. Quantificar praticantes/potencial de crescimento, estruturar competições locais utilizando pistas e espaços públicos como escolas, Ong´s, instituições, centros culturais e também garantir que profissionais de skate competidores filiados visitem o distrito a fim de fazerem apresentações nestas localidades, compartilhando experiências com quem nunca teve contato antes.  A Pista do Maia poderia atender as normas vigentes para contribuir com esta evolução. E, sem dúvidas, é importante ter pessoas capacitadas da Love CT para encabeçar esse projeto junto à CBSK.    

O Coletivo Love CT é um dos mais atuantes no skate brasileiro. Vocês se sentem reconhecidos e valorizados?

Eu acredito que a invisibilidade é o maior crime que sofremos nas periferias. O trabalho da Love CT, embora seja único e grandioso, nunca foi aceito por marcas de skate. Sempre fazem vista grossa com as nossas ações. Já realizamos oficinas no centro da cidade por diversas vezes e em grandes eventos publicitários de uma das maiores empresas de comunicação do pais. Não somos reconhecidos e quando somos entrevistados se tem a ideia de que estamos sendo valorizados e que a partir dali as coisas serão fáceis para nós. É de se estranhar, mas o Centro Educacional Unificado (CEU), que está a 5 metros da nossa sede, tem um papel muito apagado em nossas ações. E a CBSK não nos reconhece oficialmente como profissionais do skate. Essa graduação nos colocaria em outro nível, pois poderíamos dialogar com qualquer autoridade em um nível muito melhor do que se tem.

O skate pode ser considerado um instrumento para alargar os horizontes da molecada da quebrada? Você tem algum exemplo para citar, com base na sua experiência como educador?

Sem sombra de dúvidas o skate em Cidade Tiradentes tem dado vida para as pessoas. Após anos de trabalho temos diversas historias de sucesso, garotos e garotas que eram invisíveis na sociedade e que optaram pelo skate como forma de empoderamento. Desde a nossa primeira turma, uma história legal é a do Marcelo Mendes. Ele ajuda o pai dele na feira, em uma barraca de frutas. Estava cursando Medicina quando a necessitou servir a Aeronáutica. Com isso ele trocou de curso e está fazendo Engenharia Civil. O gosto musical dele é pelo violoncelo e pelo menos uma vez por ano ele aparece para andar de skate com a molecada em nosso projeto.